Obrigado!

"Kobe,

Perdoa-me por escrever em português mas isto em inglês iria demorar o triplo do tempo e já basta ter que fazê-lo todos os dias no trabalho. Também sei que irás safar-te porque és fluente em italiano e dás entrevistas inteiras em espanhol, o que é um bocado ao lado do estereótipo de um americano jogador de Basket. E se o italiano aprendeste porque viveste em Itália quando eras miúdo o espanhol é uma entre muitas demonstrações do quanto levas a sério o que fazes: no dia em que assinaste pelos Lakers, com 18 anos, disseste ao dono da equipa durante o almoço que irias começar a aprender espanhol no dia seguinte, para entenderes a vasta comunidade latina instalada em LA. E aprendeste. Por isso sei que vais conseguir ler estas palavras nem que para isso tenhas que ir buscar um velho dicionário a uma biblioteca.

Não sei se sabes, provavelmente não, mas eu não sou de ter ídolos. Admiro alguns escritores, músicos, comediantes, pessoal ligado ao cinema e desportistas mas não tenho muitos a quem a devoção seja grande. Admiro o seu trabalho mas não passa muito disso. Tu és dos poucos ídolos que tenho e nunca vais ter noção do que representas para mim desde há largos anos. No outro dia disse isto a uma pessoa e a reação foi do género “ya, ele joga bem, mas daí a ser o teu ídolo…um jogador de Basket?”. Não há nada mais parvo do que isto, como se tu fosses só um jogador de basket e se o que tu fazes se resumisse a lançar umas bolas ao cesto. Era como se o Scorcese só fizesse uns vídeos e os Monty Python só dissessem umas piadas. Ou se o Monet só fizesse uns desenhos.

Acompanho-te desde 2000, mais assiduamente a partir de 2002. Comecei a jogar basket em 1997 mas não passavam jogos teus neste pequeníssimo país e é por essa razão que não vi o Jordan ou o Olajuwon a destrocarem. Mais tarde, numa altura em que ainda não tinha computador nem playstation, o que eu escolhi para prenda de 12.º aniversário foi uma camisola tua. É linda: purple and gold, número 8 nas costas, ainda da Champion (saudades das jerseys da Champion!). Treinava muitas vezes com ela e cheguei a ir para a escola passeá-la. Sempre que a vestia sentia-me invencível e com o peito inchadíssimo: tinha a camisola do melhor jogador do mundo! Claro que tentava imitar-te mas cedo percebi que era patético e que o melhor seria continuar a fazer o pouco que sabia e não me pôr a inventar.

Tenho mais uma confissão a fazer-te antes que fiques demasiado excitado: não sou adepto dos Lakers. Nunca fui. Torço pelos Pistons, uma equipa bastante curiosa na tua carreira: em primeiro lugar, deram-te a maior tareia numa das tuas duas finais perdidas, e, depois, estiveste para ir para lá em 2007 (há quem diga que estava tudo acertado). Nessa final em 2004 só não levaste sweep porque te lembraste de marcar um triplo a 2 metros da linha e lembro-me que, apesar de cortares uma cena que poderia ter sido histórica, não fiquei muito chateado, por teres sido tu a fazê-lo: aquele triplo foi mais uma demonstração do teu jogo de um autêntico assassino, matas um jogo quando toda a gente em campo tem medo de o fazer (ou não sabe). Uns anos mais tarde, mesmo com a possibilidade de ver o meu jogador preferido na minha equipa preferida, fiquei contente com o resultado final: és um Laker, é aí que pertences e é em LA que és o Rei. Até porque depois foste às finais e foste campeão duas vezes, enquanto que os Pistons começaram a cair, a cair até ao fundo. Mas sempre que os Pistons arrumavam cedo torcia para que fosses campeão.

Já que estamos numa de confissões vou contar-te porque é que, mesmo agora com 25 anos, te admiro tanto, mais do que a todos os outros. A primeira razão é particularmente difícil de explicar mas vou tentar. Eu tenho noção de que a maioria dos meus ídolos são estrelas milionárias, quase estratosféricas, que estão numa redoma muito delas e que são intocáveis para o comum mortal. Eu sei disso tudo e ao contrário de muitas virgens ofendidas isso não me incomoda. No entanto, é importante para mim eu sentir empatia por essas pessoas, poder identificar-me com elas; detesto seres quase perfeitos, que parece já terem nascido assim. Percebeste? Pois, eu avisei que era difícil. Em ti viu-se uma evolução mental bastante grande desde que entraste na Liga, até que ganhaste o MVP e até hoje, foi quase como se eu tivesse crescido contigo. No início, com o #8 eras um puto um bocado estúpido. Não te chateies, é o que eu acho. Fazias coisas incríveis, ganhaste 3 campeonatos, começaste a ter o reconhecimento de meio mundo mas dizias demasiadas baboseiras, eras um bocado inseguro – apesar de nunca o admitires – e parecia que querias provar sempre algo a alguém. Tiveste algumas polémicas, algumas bastante conturbadas, que puseram a nu alguma fragilidade tua desconhecida mas também um homem obstinado, capaz de mover montanhas para conseguir o que quer. A separação do Shaq foi triste mas inevitável e o processo por violação (depois transformado em adultério) foi uma mancha na tua vida, mas acabaram por mostrar o lado humano de um miúdo de 20 e poucos anos, dono e senhor de Los Angeles, com demasiado dinheiro para sequer ter algum discernimento. E, no fundo, é só isso, eras apenas um miúdo que, apesar de não ter ido para a Faculdade nem andar de transportes públicos, tinha a cabeça de um qualquer miúdo deslumbrado dos subúrbios. Depois mudaste de número, tornaste-te menos egoísta, ganhaste o MVP e um lugar no top10 de sempre da Liga. O resto é História.

Esta foi a primeira razão, a segunda é mais fácil. A tua paixão pelo jogo e o empenho que sempre puseste em tudo o que fizeste é tocante e é por isso que és um exemplo para toda a gente, seja um aluno do 5º ano, um serralheiro ou um médico. Tiveste a sorte de encontrar algo que gostavas de fazer e todos os dias esforçaste-te para seres sempre melhor do que no dia anterior. E nem sabes como é bom num mundo em que parece que toda a gente vive uma frustração imensa pelo que faz ver alguém amar o seu trabalho da forma como tu sempre o fizeste. A tua ética de trabalho completamente insana só é possível se o Basket for mesmo o que te faz feliz.

Vão passar 10, 20, 50 anos após o momento em que te retirares e todos se irão lembrar de ti. Mas o que vai ficar, pelo menos para mim, não são os 81 pontos num jogo, os 5 campeonatos e os 2 MVP das Finais, o MVP da Liga, o terceiro lugar nos melhores marcadores de sempre, as 18 vezes em que foste All-Star e os 4 MVPs, o título no Slam Dunk Contest no ano de Rookie, as 24 vezes em que marcaste 50 pontos (incluindo aquela série de 5 jogos seguidos), os títulos de melhor marcador da Liga, os 21 triplos-duplos, os 121 jogos com mais de 40 pontos (meteste 40 a todas as equipas da Liga!), as 5 vezes em que marcaste mais de 60, aquele triplo a 0 graus com a mão esquerda contra os Mavs (semelhante a eu agora ir para a cozinha e começar a picar cebola com a esquerda), o record de mais pontos pela mesma equipa, os títulos mundiais e Olímpicos ou o record de vezes em que foste nomeado para a All-NBA Team e para a All-Defensive Team. Este currículo é impressionante, um rol de conquistas só ao alcance de gajos como tu (tipo 1 ou 2 em toda a História). Mas o que irá ficar para mim, aquilo que eu mais vou dizer aos meus filhos e aos meus netos é que uma vez existiu um jogador de basket chamado Kobe Bryant, que tinha uma perseverança, uma tenacidade e uma paixão tão grande pelo jogo que alcançou aquilo com que sempre sonhou – chegar ao topo do mundo na modalidade a que sempre se entregou – mesmo que para isso tivesse que ir para o pavilhão sempre pelo menos 3 horas antes de cada treino (estivesse com um braço partido ou com febre) ou tivesse que passar as viagens de avião a ver vídeos dos jogos anteriores e a chamar ao seu lugar os colegas, um a um, para retificar o que estivesse mal. Esse Kobe que nos estágios da Seleção acordava às 4 da manhã para fazer treino de ginásio até às 11h, hora do treino com a equipa. O mesmo Kobe que treinava horas por dia, sozinho no pavilhão, os mesmos movimentos que fazia em jogo, mas sem bola. Horas a treinar sem bola, meu!!

Este ano foi completamente atípico. Desde que anunciaste a retirada os Lakers têm feito uma Tour “Kobe Bryant” e jogam sempre em casa: foste ovacionado de pé em Boston (qual Ronaldinho no Bernabéu) e ouviste cânticos de MVP no Madison Square Garden. Todas as equipas fizeram um vídeo de tributo e todos, mas mesmo todos, prestaram homenagem a um dos melhores de sempre. Num vídeo da Nike vários desportistas disseram o que achavam sobre ti e estas foram algumas das coisas proferidas: “the one and only”, “killer instinct”, “dominating”, “fighter”, “agressive”, “deadly stricker”, “tenacious”, “he’s always trying to take your heart out and you got to be ready for that”, “he wanted to be better to himself”, “if you are not cheering for him you gonna have to hate him because he’s killing your team”, “unstoppable”, “clutch”, “obsessive”, “tough”, “example”, “leader”, “winner”, “competitor”, “fearless”, “genius”, “maniac” ou “legend”. O Durant chamou-te asshole, trata disso. E o Jordan, o maior de todos e aquele a quem nunca receaste ser comparado, disse isto: “Kobe had done that work to deserve the comparison. He’s the only one to have done the work”. Enough said, my friend.

Hoje será o teu último jogo e só desejo que te divirtas como sempre fizeste e que ganhes como sempre quiseste. Não vou poder estar lá, ainda tentei mas é impossível (há quem esteja a oferecer meio milhão de dólares por um bilhete, não consigo rivalizar com isso).

Ao contrário do que pensava há algum tempo não estou triste por nunca mais voltar a ver um jogo teu porque estes 15 anos em que te acompanhei valeram por tudo. Não estás morto, ainda há 2 dias meteste 35 pontos nos Rockets, mas as lesões no joelho, no tendão de Aquiles e no pulso deixaram demasiadas mazelas para que pudesses continuar. Lembrando a conversa do início e antes de ires embora, Kobe, quero agradecer-te por seres muito mais do que um gajo que lança umas bolas a um cesto: para mim e para uma vasta legião de fãs em todo o mundo tu és o Basket. Vou sentir imenso a tua falta. Como gostarias de ler e como tão bem sabes: “Arriverdeci, grazie per tutto!”.

Com amor,
Um fã"

Visão do Leitor (perceba melhor como pode colaborar com o VM aqui!): Pedro Coutinho

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