Porque, por vezes, o futebol é (mesmo) mais que um jogo

Yahya, nascido e criado no Iraque, gosta de futebol. Do “verdadeiro”, não do “americano”, como bem gosta de vincar – do que é produzido na América, de resto, aprecia pouco, talvez do “Pulp Fiction”, e já é demais. Acompanha atenciosa e religiosamente os principais campeonatos europeus, do inglês ao espanhol e, pois claro, passando também pelo português. Conhece as façanhas históricas do Benfica, os recentes sucessos do FC Porto e a “equipa do Slimani”. Em 2010, vibrou intensamente com o “triplete” do Inter de Milão, clube do qual é fã fervoroso – não estará, seguramente, muito satisfeito com o desempenho atual dos nerazzurri, mas acredita que, mais tarde ou mais cedo, a situação se inverterá. No conforto do seu sofá assiste, igualmente, ao jogos domésticos, com especial relevo para o Al-Quwa Al-Jawiya, a equipa da força aérea, que muita força tem dado aos mais desfavorecidos, e o segundo emblema com mais “Premier Leagues” iraquianas (apesar da última datar de 2004/05). Ir ao estádio? Difícil. Recorda-se de observar, em 2013, após o fim da proibição de se disputarem partidas internacionais amigáveis no território iraquiano, juntamente com 50.000 pessoas, a vitória da seleção nacional (2-1) sobre a Síria, no mítico Al-Shaab, provavelmente o mais reconhecido recinto desportivo do Iraque – curiosamente, a inauguração ocorreu em 1966, num jogo contra o... Benfica. Desde então, com a violência constante e clima de guerrilha em toda a região, assistir in loco não é para todos.

RFA 1954 – Após a II Guerra Mundial, pouco restava à Alemanha. Vidas humanas, território, confiança – tudo fora afetado, destruído, até. Os germânicos olhavam para um futuro negro, incerto, desmotivante. Porém, pelo menos dois homens, entre tantos, não desistiram e, levando um país aos ombros, provaram que, afinal, os tempos vindouros poderiam não ser tão terríveis assim: o chanceler Konrad Adenauer e o capitão da seleção federal alemã Fritz Walter. Este último, que escapara, durante a guerra, a uma possível exportação para um “gulag” russo porque um soldado soviético o vira jogar, capitaneou uma seleção ferida, instável, e onde a fraca qualidade técnica não augurava resultados proeminentes no Mundial de 1954. Mas, com a habitual frieza, os alemães superaram os obstáculos que surgiram e conseguiram chegar à final do certame, onde teriam pela frente a hiperfavorita Hungria dos “deuses” Czibor, Kocsis e Puskás. Desde 1950 que os magiares vinham aterrorizando a europa do futebol e, na copa do Mundo de 54, já tinham humilhado a RFA, na fase de grupo (8-3). Na decisão, poucos acreditavam na vitória alemã. Aliás, aos 8 minutos já a equipa de Puskás vencia por 2-0. Contudo, então, um milagre aconteceu: os germânicos conseguiram a reviravolta, conquistando o seu primeiro Mundial. Muitos argumentam que foi utilizado “doping”; outros garantem que a diferença esteve nas chuteiras. De qualquer modo, certo é que Walter e os seus companheiros deram aos 60 milhões de compatriotas um motivo para sorrir, uma esperança, a motivação que tinham perdido nas décadas anteriores e que se mantém até hoje.

Argentina 1978 – No panorama da “Guerra Fria”, várias ditaduras surgiram ao longo da América do Sul. Na Argentina tal facto não foi exceção, com o general Videla a comandar com “mão de ferro”, numa ditadura militar. Por volta de 1978 a contestação ao regime estava no auge e, como tal, a realização do Mundial de futebol neste mesmo país assumia uma faceta politico-social, para lá da desportiva. Durante 30 dias, os argentinos uniram-se em torno de um mesmo objetivo: apoiar a seleção nacional, rumo à vitória. Nesse mês, esqueceram-se as agruras da vida; na hora e meia em que Passarella e Kempes jogavam, todo e qualquer argentino dava o seu contributo. Quando no Estádio Monumental de Núñez, em Buenos Aires, o árbitro apitou pela última vez, na final ante a poderosa Holanda, a felicidade estampava-se no rosto dos milhões de “albicelestes” que esperavam por um momento assim: tão simples, mas tão belo.

RFA 1990 – No outono de 1989 o impossível aconteceu: o Muro de Berlim caiu. O meio físico pelo qual duas ideologias tão distintas eram separadas, tombou, reunindo à força duas nações que, após quase três décadas de afastamento total, já não se reconheciam. Porém, menos de um ano depois algo de mágico sucedeu. Ocidentais e orientais, tão diferentes entre si, durante os cerca de 90 minutos que compunham os jogos da RFA no Campeonato do Mundo na Itália, celebravam, festejavam, apoiavam em uníssono a sua equipa, o seu país. Onze homens dentro de campo unificavam o que a ideologia separava; Matthäus, entre outros, tornou-se ídolo, quer da criança de Frankfurt, quer da de Dresden – toda uma nação se tornava espiritualmente una através do futebol. Quando Andreas Brehme, na final, converteu o penálti que deu aos germânicos a sua terceira copa do Mundo, os agora compatriotas saíam à rua – não para batalhar, mas para celebrar.

Num Iraque dividido, poucos são os momentos em que os iraquianos estão, de facto, unidos. Após o totalitarismo de Hussein, e clima de terror de seu filho no comité desportivo e da ocupação americana, agora é o Estado Islâmico que não deixa a nação dormir em paz. Porém, nem o mais temoroso obstáculo afasta o povo da paixão; quando os “Leões da Mesopotânia” entram em campo, todo o país vibra, concentrando-se num único objetivo: amparar os seus heróis. Foi assim durante todo o campeonato asiático de seleções olímpicas que decorreu durante o mês de janeiro de 2016 e que permitiu a qualificação do Iraque para os Jogos Olímpicos do Brasil – após derrota com o Japão, nas meias-finais, foi necessária uma vitória sobre o Qatar, na derradeira partida. Como tal, a expetativa, que tantas vezes se confunde com a ilusão, é elevada. Contudo, independentemente do resultado final, há dois dados garantidos. Em primeiro lugar, é certo que apoio e força popular não faltará; após anos arredadados das grandes disputas mundiais, os adeptos não deixarão os jogadores sozinhos – irão com eles. Em segundo, os atletas convocados, que afinal de contas já passaram por aquele “inferno”, identificam-se com o povo e, assim sendo, também vão oferecer, além do empenho físico, uma alma muito caraterística – única, até, pois cada alegria que possa surgir, por muito curta que seja, vale bem o esforço.

Um golo, dois, três; uma defesa impossível, um penálti falhado – ou convertido com sucesso, uma expulsão, uma mera substituição. Tudo simples componentes de um jogo que, para muitos, é um modo ideal de “passar um bom bocado”. Porém, por vezes, o futebol é mais que isso, mais que um jogo, mais que um desporto – é algo inatingível, um fenómeno inexplicável; capaz de unir toda uma cultura, todo um povo. Foi assim para a RFA e para a Argentina no passado, é-o para o Iraque no presente e continuará a sê-lo para alguém no futuro. Não é mágico quando assim é?

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