Nascido no Brasil em 1992, o Futebol de Praia começou a entrar em nossas casas por volta do final da década de 90, com as transmissões em sinal aberto do Mundialito, a prova mais antiga da modalidade, que se estabelecera no nosso país anualmente, concretamente na Figueira da Foz. Portugal, logicamente, participava sempre, juntamente com a maior potência Brasil, a Espanha e depois algumas equipas, digamos “recreativas”, que preenchiam o calendário de jogos. Ao cabo de três ou quatro edições, muitas pessoas (principalmente jovens) já sabiam que havia aquele fim-de-semana em Julho ou Agosto que trazia sempre aquela
modalidade de futebol alternativo, jogado na areia com o pé descalço, que, com maior ou menor dificuldade juntava sempre na final Portugal e Brasil, com desfecho quase sempre favorável aos Canarinhos. E era assim, terminava o Mundialito, e durante os meses de inverno quase toda a gente se esquecia que a modalidade existia, até ao Verão seguinte.
Na verdade, nos primeiros anos do Beach Soccer, a luta resumia-se basicamente entre a Selecção Nacional, constituída pelos históricos e ainda ativos Madjer e Alan, o carismático capitão Hernâni, o defesa Marinho (ainda ativo a nível de clubes) e o guarda-redes, depois selecionador, Zé Miguel, e o Brasil, super-potência e criadora da modalidade, composta por jogadores quase todos do mesmo valor, sem nenhuma estrela clara, só para citar alguns: Sidney, Buru, Bueno, Júnior Negão, André Malias, Betinho, Jorginho, Benjamim, Mão, e muitos outros. A Espanha, comandada pela jovem estrela Ramiro Amarelle, conseguia ainda dificultar a vida dos dois favoritos, mas apenas isso, ficando-se muitas vezes pelo terceiro lugar. Mais tarde apareceram mais dois grandes nomes europeus: a França, liderada por uma armada de ex-futebolistas de 11, como os irmãos Cantona, e a Itália, que surgiu a dar o ar da sua graça com bons valores ao estilo Latino.
Ainda assim, era tudo ainda bastante amador, com as (poucas) competições organizadas pela Beach Soccer Worldwide (BSWW) feitas à custa de muitos patrocínios, inclusive as Selecções tinham que ter patrocínio frontal na camisola, quais clubes, para poderem “sobreviver”. Desportivamente, Portugal venceu o seu primeiro grande título em 2001, no Campeonato do Mundo, disputado anualmente no Rio de Janeiro. O feito teve pouca repercussão, uma vez que o evento realizava-se no Verão brasileiro (Janeiro), e foi transmitido em sinal fechado. Para a generalidade do público, a primeira grande vitória visível em televisão foi (finalmente) o Mundialito conquistado em 2003, após vitória sobre o Brasil por 7-4. Ao cabo da sétima edição (sexta em Portugal), o troféu ficava em terras Lusitanas.
Eis que em 2005 acontece o ponto de viragem para a modalidade que não era, e para muitos ainda não é diga-se, levada a sério pelo mundo desportivo, com a FIFA, à semelhança do que tinha feito como o Futsal, a pegar nas rédeas e a considerar o Beach Soccer modalidade oficial como variante do Futebol e obrigando as Selecções Nacionais a serem anexadas às respetivas Federações Nacionais de Futebol. Com isso, a modalidade desenvolveu-se, as condições de trabalho aumentaram exponencialmente, e com isso a competitividade e porque não dizê-lo, credibilidade do Futebol de Praia ganhou outras proporções.
Nesse ano de 2005, a FIFA organiza o primeiro Mundial de Futebol de Praia FIFA, onde Portugal espanta o Mundo ao eliminar o Brasil nas meias-finais em plena Praia de Copacabana, mas depois perde surpreendentemente na final frente à França de Cantona nas grandes penalidades fazendo dos Gauleses os primeiros campeões do Mundo FIFA. Uma grande desilusão para Madjer e companhia, sendo que este arrecadou todos os prémios individuais do torneio. Sucederam-se anos de sucesso moderado por parte da equipa Lusa, com conquistas da Liga Europeia em 2006, 2008 e 2010, e dos Mundialitos de 2008 e 2009, mas ao nível de Mundiais FIFA, a equipa inevitavelmente esbarrava no Escrete, sendo inclusive copiosamente derrotada por este em 2009, no Dubai, por 8-2. As maiores estrelas envelheciam, não havia formação na modalidade, e a equipa tornara-se previsível e refém da capacidade individual de Madjer, Alan ou Belchior.
Nada parecia abalar o domínio incontestado do Brasil, que, mesmo perdendo o fator casa quando a FIFA decidiu levar o Mundial para outras paragens, como Marselha, Ravenna (Itália) ou o Dubai, continuava a dominar a seu bel-prazer, com a tal excepção do torneio inaugural, em 2005. Eis que, em 2011, já quando a FIFA instituíra o Mundial de 2 em 2 anos, aparece um autêntico fenómeno do Futebol de Praia: a Rússia. A equipa de Leste, que já tinha vencido uma Liga Europeia em 2009 e chegado aos quartos de final do Mundial do mesmo ano, chegava a Ravenna com uma ideia de jogo clara e revolucionária, exponenciando tudo aquilo que se pensava que o Futebol de Praia não podia ter: rigor tático. A equipa Russa, liderada pelo treinador Mikhail Likhachev, era uma autêntica máquina, quase robótica, com substituições a cada 2 minutos, trocando 4 de cada vez (fazendo “duas equipas” de campo), muito forte fisicamente e exímia nas bolas paradas (nesta modalidade são quase sempre lances de potencial golo), aliando competência técnica e frieza competitiva. Vence esse Mundial por 12-8 frente ao Brasil, o seguinte, em 2013, frente à Espanha por 5-1, e pelo caminho 4 Ligas Europeias (só falhou 2012) e 3 Taças Intercontinentais. Chegou, viu e venceu (quase) tudo.
Portugal, esse, chegava ao momento mais negativo da sua história, quando, em finais de 2012 falha a qualificação para o Mundial do Taiti, a realizar no ano seguinte. Não estar no Campeonato do Mundo era incomportável para a potência que Portugal ainda pretendia ser, e levou à saída de Zé Miguel do cargo de selecionador. Os tempos não eram bons, e sabia-se que se iria eventualmente passar por um período de transição. O elegido para o efeito foi o setubalense Mário Narciso, que tinha passado pelos sadinos em Futebol e em Beach Soccer. Narciso chegou com a sua ideia, e formou um autêntico bloco de jogadores fixos, mantendo a maioria dos históricos, mas evoluindo novos como Rui Coimbra ou Jordan Santos. Depois de um primeiro ano em que fica em 2.º Lugar no Mundialito atrás da Espanha e na Liga Europeia atrás da Rússia, percebia-se que era possível voltar aos melhores tempos e, quem sabe, conquistar o tão ambicionado Mundial FIFA. Pois bem, a verdade é que a partir de 2014, Portugal conquistou quase tudo o que havia, começando pelo Mundialito desse ano, e partindo depois para um 2015 de sonho, onde conquista o Mundial em solo luso, em Espinho, derrotando pelo caminho a aparentemente invencível Rússia, pondo termo a 6 anos sem perder em Mundiais por parte dos russos e o Taiti (uma das novas potências) na final, oferecendo a Madjer, aos 38 anos, a possibilidade de levantar o troféu que lhe faltava; conquista também a Liga Europeia, na Estónia, numa final de loucos (5-4) frente à Ucrânia, e já este ano conta com 11 vitórias em 12 partidas, arrecadando 2 troféus em torneios BSWW e uma Euro Beach Soccer Cup.
Mário Narciso foi a chave do sucesso, aplicando o modelo de Likhachev com substituições de 4 jogadores de cada vez de 3 em 3 minutos e tornando Portugal numa equipa (quase) perfeita de Futebol de Praia uma vez que é a única no Mundo que pode aliar a imprevisibilidade e talento puro latino (presente no Brasil), com o rigor tático europeu (característica-chave da Rússia) num só. A verdade é que Mário Narciso, desde que pegou na equipa, em 12 competições, venceu 6, ficou 2 vezes em 2.º, 3 vezes em 3.º e só por uma vez falhou o pódio, ano passado, na Taça Intercontinental, onde apenas ficou em 6.º lugar. Consequência maior: Portugal lidera, pela primeira vez na sua história, o Ranking acumulado da BSWW, ultrapassando a Rússia que o detinha desde 2011, afirmando-se como a Maior Potência do Futebol de Praia Mundial, 19 anos após a formação da primeira Seleção, em 1997.
Madjer, sobrevivente único da formação inicial, com mais de 430 (!) internacionalizações e com 39 anos, será muito provavelmente a maior Lenda da modalidade até agora, e um símbolo incontornável do desporto Português, ainda que numa modalidade com pouco reconhecimento, mas que é das mais ganhadores da última década a nível de modalidades coletivas. O Mundialito está aí outra vez, neste fim-de-semana, e com ele o regresso do Brasil (ausente desde 2011), e no Domingo poder-se-á, diria, voltar às origens, com um Portugal-Brasil que promete ser o que sempre foi: um espetáculo na nossa praia.
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