Cultura de Clube e Cultura de Negócio: questão de pormaior!

Neste que é o primeiro texto que tenho a honra de escrever para o maior blogue desportivo nacional, começo desde já pelas apresentações: chamo-me Miguel Sancho, sou habitual comentador de snooker no Eurosport, ex-jornalista (Jornal Record, Loures Municipal) e, ao contrário de outros, gosto também de me assumir pelo que sou: sportinguista dos sete costados e total defensor da atual direção do meu clube que, diga-se de passagem, ajudei modestamente a eleger.

Posto isto, vamos ao tema que gostaria de debater neste primeiro artigo: a importância da cultura de clube e a dicotomia entre essa mesma cultura e a cultura de negócio que se instituiu um pouco por todo o planeta, nesta era de aldeia global que vivemos.

Recordo a eliminatória do Sporting frente ao Manchester City e relembro a frase que mais se dizia na altura: “Money can’t buy history” (“O dinheiro não compra a história”). Vem isto a propósito da discussão lançada no último “Play Off”, da Sic Notícias, programa que conta com a presença de três monstros sagrados dos grandes de Portugal. São sobretudo jogadores que, pelo que foram em campo e fora dele, sabem bem da importância de um balneário saber e sentir diariamente essa cultura de clube: Manuel Fernandes (Sporting), Rodolfo Reis (FC Porto) e António Simões (Benfica), todos eles capitães das respetivas esquipas, e homens que jogaram longos anos nos seus clubes do coração e que passaram aos mais novos o que aprenderam com as anteriores gerações.

Sporting a definhar desde João Rocha

Recordo os meus tempos de meninice: ia a Alvalade com o meu avô e via a equipa de futebol a treinar, tendo à sua volta Carlos Lopes e Mamede, entre muitos outros, que também eles se preparavam para a próxima prova. Sentia-se ali uma cultura de clube, alicerçada no ecletismo e no tremendo número de praticantes das mais diversas modalidades, em especial a ginástica (que saudades do professor Reis Pinto) e da natação.

Ora essa noção de cultura de clube e de vitórias foi-se aos poucos perdendo. Os “Manueis Fernandes” e “Jordões”, tal como os “Barões”, “Inácios” e “Euricos” foram dando lugar a “Salcedos”, “Ricardos Rochas”, “Meades”, entre outros. Quando partiram ficou o vazio, mais tarde preenchido por jovens valores (Figo, Peixe, Dani) mas que já não tinham essa noção de Sporting grande e vencedor que encheu de orgulho os que têm coração verde-e-branco no final dos anos 70 e início de 80.

Foi preciso então esperar 18 longos anos para ver o Sporting de Vidigal, Pedro Barbosa e Beto, apoiado em jovens valores portugueses e estrangeiros de outras paragens (Rui Jorge, Delfim, Dusher) e veteranos de inegável qualidade (André Cruz, Acosta e De Franceschi) para que a tal mítica regressasse para os lados de Alvalade. Tudo isto sem esquecer que o treinador, Augusto Inácio, sabia como poucos o que significava o legado de João Rocha.

Depois, novos passos atrás foram dados, com a saída progressiva e gradual dos nomes com história de leão ao peito. Quase década e meia depois, o Sporting volta a ter todas as condições para readquirir essa ideia de cultura de clube pois, apesar de muito jovens, nomes como Rui Patrício, Cédric, Adrien, João Mário e Nani sabem bem o que é vencer e percebem o Sporting e os sportinguistas como ninguém.

Esta realidade e ainda a figura de um presidente interventivo, sempre presente, conhecedor dos desejos da massa associativa e sempre pronto a dar o corpo às balas pelo clube dá uma dimensão real das mais-valias criadas por este cenário que, ainda no triste e recente consulado de Godinho Lopes, mais parecia impossível sequer de imaginar.

FC Porto e Benfica: duas faces da mesma moeda

Nos últimos 10 anos Porto e Benfica têm vindo a descaracterizar-se. Os sérvios encarnados do ano passado e os espanhóis de Lopetegui, em 2014/2015, só vêm confirmar o que já se sabia. Não poucas vezes, nos últimos anos, Benfica e Porto apresentam-se em campo sem portugueses. Se no caso do Benfica esse facto ainda tem sido disfarçado com estrangeiros com muitos anos de clube, no Porto já nem isso se passa.

Na minha opinião, o FC Porto de Pedroto e Pinto da Costa começou a ganhar quando apostou em jovens jogadores nascidos na região norte (Gomes, João Pinto, Jaime Magalhães, André, Lima Pereira, Frasco, etc.), que deram ao clube o tal suplemento motivacional para lutar contra o "centralismo de Lisboa". Foi assim (e também com o controlo gradual do sistema que gere o futebol fora das quatro linhas) que equipas de menor qualidade (os anos de Carlos Alberto Silva são disso bom exemplo) conseguiram o sucesso interno e, posteriormente, internacional.

No Benfica, depois da geração de Veloso, Chalana e Diamantino, os estrangeiros foram invadindo o 11 encarnado. A crise de 93 ainda trouxe alguns portugueses de valor, como Paulo Sousa, Paneira, João Pinto, mas os últimos anos têm sido catastróficos. Sem lusitanos de grande valor que sejam titulares permanentes, sobram ao Benfica nomes como Luisão e Maxi Pereira para continuar a passar a cultura de clube. Estou convicto que, tal como aconteceu com o Porto, também o Benfica passará por esse vazio aquando do final de carreira ou venda desses jogadores, até porque a permanência de um estrangeiro por mais de uma década num clube de topo é cada vez mais rara.

E é bom recordar o percurso do FC Porto. Depois da histórica geração dos anos 90, onde pontificavam nomes como Semedo, Paulinho Santos, Bandeirinha, Fernando Couto ou Sérgio Conceição – sendo que na equipa técnica estavam figuras célebres como António Oliveira, Inácio ou Rodolfo Reis – sobraram ainda alguns míticos atletas que faziam questão de serem capitães com a camisola 2 vestida, como Jorge Costa e Bruno Alves. Após a saída de cena destes nomes, sobraram estrangeiros com muitos anos de clube, como Helton ou Lucho. Inevitavelmente, salvo raras e honrosas exceções, os estrangeiros não acabam a carreira entre nós. Lucho já foi e a grave lesão de Helton praticamente terminou com a carreira do guarda-redes antes de tempo.

E o que é o FC Porto de hoje? Uma equipa sem cultura de clube mas sim com cultura de mercado, onde as hordas de estrangeiros vão e vêm. Mesmo com Rui Barros na equipa técnica e outros nomes históricos nas camadas jovens, definitivamente não chega. Pinto da Costa e Reinaldo Teles ainda vão fazendo o que podem, mas podem pouco, porque o balneário é algo muito próprio e os dirigentes jamais substituirão os atletas na passagem do testemunho, do discurso e da cultura.

Olho para esta equipa do Porto e não vejo ninguém que tenha percebido a importância deste jogo (a começar no treinador), especialmente tendo em atenção o momento das relações institucionais entre Porto e Sporting (ou, se quiserem, entre Pinto da Costa e Bruno de Carvalho). Rodolfo Reis, profundo conhecedor da importância dessa mentalidade, colocou (e bem) o dedo na ferida, ao dizer que alguém teria de explicar ao treinador que esta eliminatória da Taça de Portugal era muito mais que um simples jogo de futebol.

Poderá o futuro ser verde-e-branco?

Serve tudo isto para dizer que confio na criação de uma mística leonina para os próximos anos. Para que tal aconteça, basta que os jovens saiam a um ritmo cadenciado, e que, por cada um que saia, um outro se levante (António Oliveira dixit), de preferência inundado desse espírito de conquista em tons de verde. É fundamental aguentar as saídas até aos 23 ou 24 anos (tal como foi feito com William Carvalho) e não permitir que outros saiam de todo (Adrien e João Mário são bons exemplos).

Além disso, é também muito importante a conquista – já esta época – de títulos. A onda verde que se criou desde que Bruno de Carvalho assumiu a presidência exige isso, e o discurso do líder e do treinador assentam nessa ideia do sucesso a curto prazo. O que aconteceu nas bancadas do Dragão, onde quatro mil sportinguistas abafaram mais de 30 mil dragões, é sintomático do entusiasmo criado nas hostes leoninas, em contraponto com um público que criou o famoso “Tribunal das Antas”, onde os adversário sofriam horrores, mas que hoje mais parece uma sombra de um passado não muito distante.

Se tudo isso acontecer, o Sporting será na próxima década uma equipa assente de novo na cultura de clube, ao contrário dos adversários que, a cada ano que passa, têm apenas e só cultura de negócio. E essa cultura de clube, meus caros, consegue muitas vezes fazer das fraquezas forças, e ganhar onde outros não conseguem.

É assim que se formam campeões!

Miguel Sancho, comentador da Eurosport

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